O marquês, seus escravizados e uma rua na Gávea

O marquês de São Vicente que dá nome à principal rua da Gávea, zona sul do Rio de Janeiro, foi proprietário de escravos. Essa informação nunca pareceu relevante a biógrafos e estudiosos de sua obra, mas é fundamental para refletir sobre como o principal porto escravista das Américas lida com a memória pública da escravidão.

“Ministro do STJ, presidente de MT e RS, Deputado, senador do Império e ministro da Justiça”: ao longo da rua marquês de São Vicente, várias placas trazem as informações biográficas do nobre que dá nome a rua. Para quem passa apressadamente pela principal via do bairro da Gávea, o sucinto espaço de duas linhas justifica a homenagem: esse homem foi um construtor do Estado Imperial brasileiro. A nossa melhor historiografia política não diverge em situar o marquês entre os mais proeminentes estadistas de sua época. Na seleta coleção de livros “Formadores do Brasil”, há um volume todo dedicado à sua vida e obra. O nome da rua parece, portanto, indicar uma homenagem à atuação pública do marquês, mas um documento privado pode indicar que esse é um truque de construção de memória pública. Essa documentação também fornece dados sobre a relação do marquês com a escravidão e seus escravizados, elementos que serão fundamentais para que tracemos uma reflexão sobre cultura histórica e memória pública através de uma abordagem emancipatória, levando em consideração demandas dos frequentadores do bairro da Gávea.

O documento histórico em questão é o inventário de bens da partilha realizada pelos herdeiros do marquês de São Vicente por ocasião de sua morte no ano de 1878. Lá é possível constatar que José Antônio Pimenta Bueno, o marquês de São Vicente, foi proprietário de um vasto terreno na região da antiga Fazenda da Lagoa Rodrigues de Freitas até as proximidades do Morro Queimado, mais especificamente na então chamada rua Boa Vista da Gávea. É difícil precisar com exatidão os limites dessa propriedade, mas é possível afirmar que ficava localizada na mesma região da atual rua marquês de São Vicente. Um estudo sobre a história do bairro aponta que “a rua que levava até a residência do abolicionista Pimenta Bueno” se tornaria a atual marquês de São Vicente. E completa: “O palacete do marquês e as terras ao redor passariam à família Guinle. Vendida à Prefeitura, a propriedade iria abrigar o Museu da Cidade e o Parque”. É razoável supor que quando a rua ganhou o nome do marquês em 1917, a deferência era mais uma alusão ao antigo proprietário das terras daquele lugar do que a atuação pública e intelectual do nobre.

Na primeira imagem, "Vista do Corcovado e Lagoa Rodrigo de Freitas observada da Boa Vista da Gávea, Rio de Janeiro", óleo sobre tela de Louis Buvelot, 1844.  A segunda imagem, de satélite, mostra a macro região da Gávea e parte da floresta da Tijuca que lhe margeia.

Ali o marquês viveu com sua esposa e mantinha em cativeiro, pelo menos, quinze pessoas escravizadas. Sobre os escravizados trataremos em detalhe mais à frente. Por ora, busquemos explicar o que nos motivou a desenvolver esse projeto de extensão. 

Uma lei de 2013 veda a atribuição de nome de rua a pessoa “que tenha se notabilizado pela defesa ou exploração de mão de obra escrava”. Até hoje, Pimenta Bueno nunca foi notabilizado “pela defesa ou exploração de mão de obra escrava”. Diferente de muitos de seus pares, não fez dinheiro explorando escravizados em plantações de café ou cana de açúcar. Como se pode notar da citação do parágrafo anterior, é chamado inclusive de "abolicionista". O marquês é muito lembrado por ter redigido, em 1866, um conjunto de projetos de lei que serviriam de base à chamada Lei do Ventre Livre. Como veremos, mesmo depois da promulgação dessa lei, em 1871, o marquês continuaria a frequentar mercados de compra e venda de escravizados até os anos finais de sua vida. Tendo em mãos uma nova camada biográfica sobre o marquês, e em mente os debates recentes que questionam a memória pública de figuras ligadas à escravidão, resolvemos consultar a comunidade do bairro da Gávea acerca do tema.

 

Conversando com passantes

 

No dia 3 de maio de 2023, fomos então à rua marquês de São Vicente. Munidos de um módico questionário do Google Forms em nossos celulares, conversamos com cinquenta pessoas abordadas aleatoriamente. A maior parte dos entrevistados, vinte e duas pessoas, eram trabalhadores que não moram na Gávea, mas trabalham lá; outras quatorze eram residentes ali ou em bairro vizinho; oito eram estudantes, e ainda opinaram seis entrevistados que estavam apenas de passagem. O pequeno universo amostral revelou um interesse compartilhado por mais debates sobre memória pública, bem como a força e enraizamento da crítica à perpetuação de homenagens a figuras relacionadas ao escravismo em paralelo à sub-representação de personagens e grupos sociais periféricos e minoritários. Na fala de parte substancial dos passantes consultados os marcos urbanos e as placas das ruas aparecem como um campo de disputa por reparação das desigualdades sociais.

Muitos deles, 86%, afirmaram se interessar por saber quem são as personalidades homenageadas nos nomes de ruas. Mas quase ninguém conhecia o marquês de São Vicente: apenas 8% relataram saber quem foi. Grande parte das pessoas consultadas, mais precisamente 80%, se mostraram contrárias que proprietários de pessoas escravizadas tivessem sua memória perpetuada em nomes de ruas. Os demais 20% relativizaram a questão com base em dois argumentos gerais: 1) essas personalidades devem ter tido outras contribuições sociais para além de suas relações com o escravismo, e estes outros aspectos não podem ser esquecidos; 2) que para aquela época histórica a escravidão era comum, legal e aceita.

É importante lembrar que conhecer essa dimensão da trajetória das figuras históricas não implica apagamento de seus serviços públicos mais conhecidos, se trata justamente de fazer o contrário. A intenção é trazer à tona o que foi camuflado, escondido e esquecido propositalmente em um processo político que por muito tempo buscou tangenciar a escravidão, remetendo-a, para um passado imemorial e desconectado da construção dos alicerces do Estado brasileiro, da fortuna de nossas elites econômicas e das distorções sociais prevalentes mesmo no pós-abolição. Com isso também procura-se evidenciar que nossos valores já não são os mesmos do passado e que as representações aceitas e celebradas devem ser passíveis da crítica do presente.

No nosso pequeno universo de entrevistados, o impulso por refletir e questionar as representações do passado se mostrou predominante. Quando aventamos que o marquês chegou a possuir escravizados, trinta e duas pessoas espontaneamente se expressaram no sentido da troca do nome da rua. Ideias como uma retificação ou explicitação nas placas, por exemplo, surgiram. Entre os que entendem que o nome da rua deve ser mantido, foram feitas sugestões de algum tipo de conscientização da população sobre a vida do marquês e sobre o fato de ele ter sido proprietário de escravos.

Mais de 70% das pessoas declararam que a diversidade da sociedade brasileira não é bem representada nos nomes das ruas. De fato, um levantamento realizado recentemente indicou uma abissal desproporção em termos de gênero, por exemplo. Enquanto quase 800 mil ruas no país levam nomes de homens, apenas 176,4 mil receberam nomes de mulheres. E muitas pessoas consultadas em nossa pesquisa afirmaram que deveriam ser mais lembradas as referências a personalidades vinculadas a causas sociais como o feminismo, o combate à ditadura militar, o antirracismo e o movimento LGBTQ+, bem como trabalhadores, artistas populares e figuras emblemáticas da cultura carioca. Com base nessas propostas, elaboramos algumas ideias que serão apresentadas no próximo tópico.

Por fim, é interessante notar que mesmo aqueles que responderam que não se interessavam pelo assunto no início do diálogo, revelaram que após a reflexão causada pelo questionário, pesquisariam não só pelo marquês usado de exemplo, mas também por outras ruas conhecidas por eles.


Os escravizados do marquês


Repugnante, odiosa e bárbara: foi nesses termos que Pimenta Bueno classificou a escravidão. Quando redigiu o preâmbulo dos projetos para liberdade do ventre das mães escravizadas, o então senador reconhecia o estado de atraso do país em relação a onda internacional de políticas abolicionistas: Resta só o Brasil; resta o Brasil só!. Mas mesmo admitindo que a escravidão era uma fatal instituição que corrompe a moral da sociedade, achava razoável adiar em mais de três décadas seu término. No dia 31 de dezembro de 1899 todos serão livres. Para o marquês, se a abolição fosse feita de uma vez só e antes dessa data, o cenário seria catastrófico. Na cabeça senhorial do marquês de São Vicente, os escravizados seriam incapazes de gozar de liberdade plena e imediata, recorreriam ao furto e ao roubo. Assim, deveriam ser tutelados e submetidos a regimes compulsórios de trabalho para que não se tornem vadios e vagabundos

O marquês não se diferenciava de outros homens brancos de sua classe, como o historiador Sidney Chalhoub há algum tempo já indicou: “Essa visão dos negros como potencialmente vagabundos, criminosos, devassos e outros epítetos pouco lisonjeiros era compartilhada pelos abolicionistas em geral”. Esses argumentos reforçavam o ideal supremacista de que as pessoas em cativeiro eram incapazes de viver por si, seriam dependentes da orientação moral e supervisão de seus senhores. Todo esse palavrório mal disfarçava o paradoxo de que eram eles, os senhores, que viviam em profundo estado de dependência de seus escravizados. Os cuidados com a casa, o transporte, o que comiam e vestiam, tudo era resultado do talento e esforço de trabalhadores negros.

Como foi dito antes, quinze escravizados viviam sob a posse do marquês. Eram nove homens e seis mulheres que, de acordo com seu inventário, eram especializados nas seguintes funções: quatro no serviço doméstico, dois na cozinha e outros dois copeiros, duas eram costureiras; haviam três nos serviços agrícolas, um outro era boleeiro, isto é, era condutor das charretes e cuidador dos animais de tração. Uma outra escravizada, Ricardina, tinha treze anos e não teve seus serviços declarados. Havia ainda um escravizado mais moço, Felippe, de 11 anos, na lida dos “serviços domésticos”. Cabe notar que Felippe e Ricardina ainda não haviam sequer nascido em 1866, quando o marquês escreveu as considerações sobre a escravidão citadas mais acima. E, de fato, a maior parte das pessoas que viviam sob o seu domínio eram jovens: só cinco escravizados tinham mais que 23 anos. 

Mesmo afirmando publicamente o caráter nefasto da escravidão, o marquês não deixou de ser um agente ativo no mercado de compra e venda de escravizados. Já que até meados da década de 1870 o preço dos escravizados seguiu subindo no Rio de Janeiro, o sábio marquês não titubeou entre a razão moral e a econômica. Ele investiu relevante soma de seus recursos e comprou ao menos cinco escravizados entre 1874 e 1877. São pessoas que foram submetidas às agruras do tráfico interprovincial, separadas à força de suas famílias e forçadas a romper seus laços comunitários. Felicidade, de 23 anos, foi trazida da cidade de Caravelas no sul da Bahia. De mais longe saíram Thomé, de 17 anos, trazido do Ceará, e Barcilícia, com 35 anos, do Maranhão. Completam as últimas aquisições os jovens José, 17 anos, e Beatriz, 23 anos, saídos respectivamente de Guaratinguetá-SP e Macaé-RJ.

É curioso que dos quinze escravizados listados no inventário, apenas um tenha sido alforriado por determinação do marquês de São Vicente em meio a suas últimas vontades. Se trata de Antonio, seu boleeiro. Como era de se esperar, a documentação não informa nada sobre a relação dos dois, mas é possível especular com as poucas informações que são fornecidas. Parece lógico supor que por transportar o marquês em longas travessias de charrete entre a Gávea, o centro da cidade e além, Antonio dispusesse de tempo de convívio e oportunidade de aproximação para persuadir seu senhor da causa de sua liberdade. Mas há outra singularidade no registro de Antonio. Ele era o único viúvo em meio a um plantel formado apenas por escravizados solteiros. Talvez tivesse filhos. Quatro jovens escravizados são listados com filiação materna conhecida (a paterna não é mencionada), Alberta (18 anos), Rosalina (15 anos) e Felippe (11 anos) eram filhos de Rosa, e Matheus (22 anos) filho de Juliana. Nem Rosa e nem Juliana foram listadas e seus filhos já estavam sob posse do marquês antes de 1872, ano em que foi feito o primeiro registro de escravizados do Império. Assim sendo, não nos parece absurdo supor que a viúva de Antonio fosse Rosa ou Juliana. Se essa hipótese estiver correta, a alforria concedida a Antonio não significava que ele estaria desvinculado daquele lugar onde viveu enquanto escravizado, sua descendência que permanecia escravizada na propriedade da família do marquês seria um elo de vínculo e posse de Antonio com a propriedade da Gávea. Antonio ganharia sua alforria, mas não sairia da órbita de seu senhor.

As fontes não nos permitem ir mais além em especulações e acreditamos que já temos um ponto aqui. O marquês tinha escravizados, e daí?

No inventário do marquês a lista geral de seus escravizados entre os "bens semoventes", antes dos "animais". Em outras partes do documento é possível ler sobre as filiações e o histórico de vendas daqueles adquiridos após 1872.

Olhando em perspectiva, as ideias emancipacionistas do marquês parecem meio emboloradas. Certamente não eram originais, foram decalcadas de um conjunto de leis que já estava em aplicação em outras sociedades escravistas. Muitos de seus mecanismos formalizavam práticas que há muito eram reivindicadas e negociadas por trabalhadores escravizados em meio a um amplo repertório de resistência que já foi bem estudado pela historiografia recente. Mesmo os “ideais de civilização” que floreavam os discursos do nobre eram postos de lado quando se tratava do gerenciamento de seus investimentos e do bem-estar de sua família. Mas ao fim e ao cabo, é provável que os dotes intelectuais e a capacidade de articulação política do marquês nem tenham sido levados em conta para a homenagem com o nome da rua. Talvez o marquês de São Vicente das placas seja originalmente apenas uma alusão ao proprietário daquelas terras.

Proprietário de terras, intelectual, político. Em nenhuma dessas construções de memória o senhor de escravos era aludido. Não era, digamos, uma representação que se acomodava na constituição do personagem histórico a ser lembrado. Houve um tempo, longo tempo, que esse tipo de homenagem era consentido sem questionamento. Não é mais. Assim indicam os depoimentos colhidos na nossa pesquisa realizada na rua do marquês.

A expressiva maioria das pessoas entrevistadas, como foi dito, preferem que o nome da rua seja trocado. Demandam mais representatividade e sugerem, por exemplo, mais nomes de mulheres e trabalhadoras. Então, por que não Felicidade, mulher preta que viveu e trabalhou nas cercanias dessa mesma rua? Sobre ela quase nada se conhece, mas sabemos que ela fez parte de uma história marcada pela diáspora e o apagamento. Sua história também é uma alegoria em reconhecimento, honra e celebração das pessoas que construíram a Gávea. Sua lembrança marcada em nome de rua pode ser uma tímida inciativa de contrariar a naturalizada perpetuação das violências do passado.

Na primeira imagem, a casa onde viveu o marquês e os trabalhadores escravizados, que hoje é o Palacete do Museu Histórico da Cidade do Rio de Janeiro. A instituição é um espaço apropriado para rememorar a vida dessas pessoas escravizadas, fica aqui a sugestão. Na segunda imagem, um desenho de época do Solar Grandjean de Montigny, também na Gávea, uma mulher é retratada levando um vaso apoiado na cabeça. Talvez uma das muitas trabalhadoras, escravizadas ou livres, que movimentavam a cidade do Rio de Janeiro.

Sobre o projeto

Esse site é produto de um projeto de extensão piloto desenvolvido por alunos de História da PUC-Rio durante a disciplina de Oficina I, 2023.1, turma 2KB. Sob coordenação do professor Felipe Azevedo e Souza, fizeram parte do projeto: Luis Eduardo dos Santos Ferreira, Gabriela Diehl Madeira, Lara Carmona Gomes, Arthur Goulart de Sá Belchior, Alexandre Saraiva da Silva (retratados na foto abaixo respectivamente da esq. para a dir.), além de Gustavo de Souza Lenz que não saiu no retrato, mas também fez parte da equipe do projeto.

Anexos e referências bibliográficas

Lista das pessoas escravizadas no inventário do Marquês de São Vicente


Alberta, parda, solteira, costureira, 18 anos, filha de Rosa.


Ricardina, fula, solteira, 13 anos, filiação desconhecida.


Rosalina, fula, solteira, costureira, 15 anos, filha de Rosa. Obs.: Sofrendo de moléstia incurável.


Felicidade, preta, solteira, serviço doméstico, 23 anos, filiação desconhecida. Matriculada em Caravelas na Bahia em abril de 1872. Vendida por escritura em 22 de janeiro de 1876, depois em 10 de fevereiro de 1876, mais uma vez em agosto de 1876, até chegar ao marquês em 27 de novembro de 1877.


Beatriz, preta, solteira, serviço doméstico, 23 anos, filiação desconhecida. Matriculada em Macaé – RJ em maio de 1872. Foi vendida duas vezes até ser comprada pelo marquês em 1877.


Matheus, preto, solteiro, serviço agrícola, 22 anos, filho de Juliana.


Barcilicia, preta, solteira, cozinheira, 35 anos, filiação desconhecida. Matriculado no Maranhão em 1872


Arão, pardo, solteiro, copeiro, 26 anos, filiação desconhecida.


Thomé, pardo, solteiro, copeiro, 17 anos, filiação desconhecida. Matriculado no Ceará em agosto de 1872


José, pardo, solteiro, serviço doméstico, 17 anos, filiação desconhecida. Matriculado em Guaratinguetá - SP em 1872. Comprado pelo marquês em 1876.


Felippe, pardo, solteiro, serviço doméstico, 11 anos, filho de Rosa.


Luiz, preto, solteiro, cozinheiro, 57 anos, filiação desconhecida. Obs.: Sofrendo de coração.


José, preto, solteiro, serviço agrícola, 65 anos, filiação desconhecida. Obs.: Sofrendo de moléstia incurável.


Caetano, preto, solteiro, serviço agrícola, 63 anos, filiação desconhecida. Obs.: Doente e defeituoso.


Antonio,  pardo, viúvo, Boleeiro, 58 anos, filiação desconhecida.


O inventário do Marquês de São Vicente está disponível online no site do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro no seguinte link: https://www4.tjrj.jus.br/acervo/asp/prima-pdf.asp?codigoMidia=1109&nomeArquivo=AP%5F022530 (acessado em 11 de maio de 2023).


Obras consultadas